Festival de dança move Berlim à moda brasileira
Durante 11 dias a capital alemã tem a chance de um vislumbre da cena de dança contemporânea brasileira. Mantendo o ritmo bianual, o festival Move Berlim se realiza pela quarta vez de 16 a 26 de abril de 2009, contando com parceiros fortes, como a Fundação Funarte, o Ministério da Cultura do Brasil e Embaixada Brasileira na Alemanha, assim como o Instituto Goethe, a Tanzfabrik Berlin e o Tanzplan Deutschland.
'Sobre ossos e robôs', do Núcleo de Criação do Dirceu
A atual edição aborda campos temáticos diversos: das tensões entre artes plásticas e dança ou a cooperação entre intérpretes com e sem deficiências, às relações entre os sexos no Nordeste brasileiro.
Os organizadores do evento, Wagner Carvalho e Björn Dirk Schlüter, enfatizam ainda outro ponto focal: o intenso movimento de dança e teatro do Núcleo de Criação do Dirceu, em Teresina, Piauí. Este comparece com a estreia europeia de três peças: Corpo manual, 2 Heterogêneo e Sobre ossos e robôs. Além disso uma coreografia de seu fundador Marcelo Evelin, Bull Dancing / urro de omi boi, abriu o festival.
Três vezes HAU
O programa noturno do Move Berlim 2009 vem apoiado por uma série de palestras e conversas com o público, cobrindo temas como: "A dança de hoje nos passos da dança de ontem", "Definição infinita para arte, inclusão e igualdade" e "Dança, ensino e ação culturais", a exemplo de projetos em Santa Catarina e Bahia.
Palco das apresentações e debates é o autodenominado "combinado teatral diferente" Hebbel am Ufer. Fundado no final de 2003, ele dá vida ao "canto mais morto do bairro de Kreuzberg", tendo apresentado, somente em sua primeira temporada, 118 diferentes grupos, alemães e internacionais.
Entre os numerosos projetos não convencionais que abrigam as três casas do complexo, rebatizadas HAU 1, 2 e 3, constam outros dois festivais: o 100º Berlin, de teatro independente, e o Context, de dança.
Pseudópodos e solos
DI cia. de danca: 'Procedimentos de um pseudópodo'
Com Procedimentos de um pseudópodo a DI Cia. de Dança, parte do Centro de Estudos do Movimento Hip Hop, de Macaé, Rio de Janeiro, explora as possibilidades de interação coreográfica com portadores de deficiência. Num "quarto de brinquedos", objetos como uma cadeira de rodas começam a dançar, levando à expansão o vocabulário gestual. O título é uma alusão aos "falsos pés" dos animais invertebrados.
O grupo Dimenti, da Bahia, compõe-se de profissionais de formações diversas, empregando, entre outras, a linguagem dos desenhos animados. Em uma das duas obras trazidas para Berlim, ele coloca em questão as noções convencionais de masculino e feminino, não recuando diante das implicações políticas: A Mulher-Gorila "problematiza um caráter instrumentalista de categorização que demarca sinais seguros de gênero, fixando identidades essencializadoras".
Denise Stutz, cofundadora do já legendário Grupo Corpo e personalidade definidora no panorama da dança contemporânea brasileira, apresenta-se com 3 solos em um tempo, uma "reflexão em cena" sobre três criações realizadas entre 2003 e 2007.
Interdisciplinaridade, clichês e história
Em Desenho, a bailarina Margô Assis e o artista plástico Eugênio Paccelli Horta dissolvem as fronteiras entre suas artes, adotando o papel, lápis, tesoura, estilete e outros apetrechos gráficos como instrumentos coreográficos.
Esse "espaço de ações" é apresentado em programa duplo com Produto de 1ª, da mineira Renata Ferreira e do cearense Fauller. A partir de suas vivências no exterior, ambos dialogam numa série de vídeos amadores e perguntam: "Seria possível então enxergá-los além de sua imagem nitidamente mestiça, exótica e estereotipada?"
Já a Companhia de Dança da Cidade, ligada à UniverCidade do Rio de Janeiro, se lança num projeto ambicioso: investigar a história da coreografia brasileira moderna e contemporânea. Assim, o grupo de jovens bailarinos sob a direção de Marise Reis e Roberto Pereira recria – e expõe ao questionamento – peças dos anos 70 e 80 de Graciela Figueroa, Lia Rodrigues, Regina Sauer e João Saldanha, entre outros.
Entre o bumba e a vanguarda
Logo na abertura do Move Berlim o coreógrafo Marcelo Evelin e sua companhia Demolition Inc. provaram que arte ainda consegue provocar e até mesmo ofender certos segmentos do público.
Seu urro de omi boi compõe a segunda parte de uma trilogia baseada na icônica obra de Euclides da Cunha, Os sertões. De um lado, apenas sugerido através de adereços e máscaras ou fragmentos de música e dança, o arcaico e regional ritual do bumba-meu-boi.
Do outro, um repertório de ações cênico-coreográficas cuja capacidade de "épater la bourgeoisie" se creria irremediavelmente esgotada, neste endurecido princípio de século 21: extremos de duração ou volume, de atividade ou minimalismo; interpelação direta do público; dramaturgia não linear, incluindo saltos e cortes aparentemente arbitrários ou a recitação de longas listas (as partes do corpo humano, os preços das partes do boi).
E – como não? – confusão de gêneros, gesticulação agressiva, violentas vocalizações guturais, nudez frontal.
Como nos bons velhos tempos
'Bull Dancing / urro de omi boi'
No último terço das quase duas horas do espetáculo já era sensível uma certa intranquilidade no HAU 1, com comentários impacientes e alguns espectadores deixando a sala ostensivamente.
Mas o coro dos descontentes se tornou explícito na cena final, quando, em meio a uma inexplicavelmente festiva coreografia de bumba-meu-boi, um dos dançarinos passa – também sem motivo aparente – a espancar a única mulher do elenco.
Interrompida a dança, Evelin tomou o microfone para perguntar à plateia: "Você tem algo a dizer?" Após vários segundos de silêncio, vieram as respostas, em parte bastante eloquentes: "Isso é uma provocação do público!", "Es una mierda!", "Dança! Dança!", culminando em vaias e assobios esparsos.
Em meio à agitação, a tímida opinião de uma das poucas espectadoras que pareciam ter entendido a intenção original do coreógrafo: "Stop it and go help the woman".
Se bom ou ruim, é questão de gosto pessoal e convicção estética, mas não deixa de ser refrescante ver um público envolver-se de tal forma com a ação no palco. Um pequeno succès d'escandale, como nos bons, velhos tempos. No entanto, ao fim de tudo, venceu mesmo o longo e sensato aplauso.
Autor: Augusto Valente
Revisão: Carlos Albuquerque