Deutsche Welle
Move Berlim apresentou dança
como fator de reflexão e mudança social
Exótico, ritmo no sangue, alegria e beleza: justo a imagem do brasileiro que o festival de dança se recusou a reforçar. Muitos debates, autorreflexão e um encontro com o passado da arte no "país sem memória".
Organizar um festival de arte envolve uma série de decisões, as quais, uma vez tomadas, eliminam inúmeras outras possibilidades. No Move Berlim 2009 ficou bem claro o que seus diretores Wagner Carvalho e Björn Dirk Schlüter quiseram a todo custo evitar: nem reglorificar o mainstream, nem alimentar o clichê do brasileiro exótico, ritmo no sangue, alegria e beleza puras.
Também na contramão do clichê veio a oferta abundante e consequente de palestras e debates. ("Brasileiro também reflete! Até mesmo os que dançam!") É certo, um efeito colateral foram queixas reiteradas de que "faltou dança". Mas na barganha o espectador persistente ganhou um vislumbre do que (também) acontece às margens e nos interstícios das carreiras internacionais brilhantes e megaeventos de dança no Brasil.
Esperando até hoje
De um lado, projetos com um pé no trabalho de cidadania, como os da DI Cia. de Dança (Macaé) ou do Núcleo de Criação do Dirceu (Teresina), testemunhos vivos do potencial da arte para redefinir destinos sociais, motivar existências e até comunidades inteiras. Do outro, uma visita ao ateliê de profissionais que – "em vez de dançar" – justamente se questionam sobre o "porquê" e o "para onde" de fazer dança – hoje, no país natal ou como brasileiro no exterior, neste momento de suas vidas, etc..
A resposta/pergunta tomou a forma de experimentos interdisciplinares – o Desenhode Margô Assis e Eugênio Horta, o diálogo em vídeo de Renata Ferreira e Fauller –, assim como de bem humoradas reflexões cênicas sobre o to dance or not to dance.
Esse foi o caso do grupo Dimenti (Salvador): autorreferencial, a um tempo moleque e contundentemente honesto, seu Tombé levou o público para um passeio de trem-fantasma pela prática dançante – as aulas, os editais para projetos, dançarinos versus atores, balé versus ioga, a confrontação com os monstros sagrados, concorrência, quotas, luta pela sobrevivência.
E ao final, no proscênio, armados para o debate, seríssimos e frontais: "Só saímos daqui quando alguém nos der uma boa definição para 'dança contemporânea'". Se a ameaça fosse a sério, eles estariam esperando até hoje.
A lycra e o preto-e-branco
A Companhia de Dança da Cidade mostrou ainda uma outra possibilidade de movimento de dança, hoje. Em 2003, inspirados por uma trupe norte-americana de "danças de repertório", os professores Roberto Pereira (também crítico e autor) e Marise Reis (também dançarina) se propuseram a reconstruir obras brasileiras modernas e contemporâneas: coreografias, figurinos, música, luz, tudo. Como executantes, alunos ou graduados de Licenciatura na UniverCidade do Rio de Janeiro, um centro universitário privado.
Não é sem motivo que Pereira fala de uma "aventura arqueológica", na qual todo o material ligado à produção investigada – registros em vídeo e foto, críticas, comentários, entrevistas, anotações – se torna "objeto de desejo". Uma tarefa de Sísifo autoimposta, dir-se-ia: com recursos financeiros mínimos, reviver amostras da mais efêmera entre as artes, cronicamente mal documentada, ainda mais num país que, segundo reza o clichê, "não tem memória". O professor admite: "Uma loucura!"
Entre questões de direitos autorais e pruridos por parte dos criadores, alguns dos obstáculos encontrados rendem anedotas divertidas. Como a dificuldade de determinar a cor de um figurino conhecido apenas através de um vídeo em preto-e-branco; uma monumental chuva de areia eliminada por motivos de praticidade. Ou a total impossibilidade de se comprar lycra hoje, a fibra sintética que ditou o visual da década de 80.
O moderno e o novo
Tudo considerado, chega a ser desconcertante a competência com que a companhia apresentou, em dois dias, um total 11 coreografias extremamente variadas, numa espécie de gran finaledo festival. Sobretudo por tratar-se, em princípio, não de virtuoses, mas sim de futuros profissionais do ensino, dançando pela primeira vez no exterior. Acresça-se o intimidador fato de os intérpretes originais das coreografias constituírem o crème de la crème do país. Nomes como Deborah Colker, Regina Sauer, Angela Nolf ou Caio Nunes eram lançados com naturalidade durante a apresentação dos números.
Danças de repertório abarca coreografias criadas entre 1973 e 1994. Num extremo da escala, encontram-se obras claramente "datadas", como a hierática Suíte barroca de Nina Verchinina, a mais antiga de todas, em mais de um sentido. Ou a jazzdance de Carlota Portella Minha América(1985) e o Concerto em F (1982), de Lourdes Bastos, sobre música de George Gershwin, acentuando o caráter arqueológico da aventura.
Guardam um frescor irreverente as peças realizadas por Graciela Figueroa entre 1976 e 1980. Como lembra Roberto Pereira, em plena ditadura militar a uruguaia escandalizou o Rio de Janeiro, "capital da dança clássica", com seus dançarinos que se exibiam pelas ruas, gritavam, batiam tambores e fumavam maconha.
O solo Busca opus 39, de Sonia Mota, foi transformado em duo por ela própria. Sexagenária impávida, Mota o dançou no festival ao lado de uma bailarina nascida em 1985, mesmo ano da criação de sua peça. Um contraste de corpos que poderia ser "objeto de estudo", sugere a coreógrafa.
"Registros no corpo"
Igualmente de 1985 é o pas-de-deux masculino Boxe, possível candidato a favorito do público. Excetuados os socos, a "dança-vinheta" de Renata Mello exibe com ironia tudo o que circunda e se oculta por trás dessa forma de luta: ostentação galinácea; agressividade gratuita de machos que se esbarram de propósito; frenéticos arabescos de punhos; intermináveis abraços em câmera lenta, roçando o homoerotismo. Ao fundo, uma chanson francesa: "Moi, je voulais un homme / Ni trop laid, ni trop beau..."
Catar (1987), de Lia Rodrigues e João Saldanha, é um elaborado sistema de signos, a começar pela trilha sonora, combinação de cantos de pigmeus africanos, Philip Glass e o escandir de uma parlenda: "Cata, cata, cata /Deixa eu catar / Se não for o da frente / O de trás tem que catar". No contínuo da comicidade até o trágico, a coreografia se estrutura em torno dos vários sentidos do verbo no título: recolher do chão (achado de sorte ou para sobreviver), furtar, catar parasitas.
A trilha sonora também é fator essencial em Valsa Volúpia, criada em 1988. Dispersos pela cena, a luz deixa entrever desolados cogumelos, azuis-celestes, gigantes. À medida que se desenrola a música – Vida de artista, de Johann Strauss, numa roufenha gravação histórica – revelam-se as bailarinas, de tule à la Degas e traseiro voltado para o público. Desgrenhadas, rostos impassíveis, movimentos espasmódicos e dessincronizados, elas são como autômatos quebrados.
Executada com bravura no encerramento do Move Berlim, no teatro HAU 1, a peça de Ana Maria Mondini evoca tudo o que jamais se associaria com o balé clássico: sabá de bruxas, arrogância do flamenco, frêmito da tarantela, abuso sexual, possessão demoníaca, convulsão de Pombajira. Um compêndio de maus modos, cruéis segredos de boas meninas quando ninguém está olhando. Em brevíssimos momentos, entretanto, tudo é impecável idílio vienense: as bonecas até sorriem. E aí o som também se desanuvia, chiados e distorções dão lugar ao mais puro som digital: um "normal" que é falso, mais obsceno do que todo o resto. Mas logo vai passar.
Um momento arrepiante da dança brasileira, bem vivo mais de 20 anos depois – e que estaria enterrado, sem esse "registro no corpo" pela Companhia da Cidade. Não se trata de um resgate, "depósito de recordações", insistem seus fundadores: é construção, no presente, da história da dança.
Autor: Augusto Valente
Revisão: Simone Lopes